segunda-feira, 18 de março de 2013

Retorno

Retornei à cidade em que nasci. Um homem corria a esmo na antiga rua do cinema.
Na rua abaixo, uma mulher gritava por socorro ao filho esfaqueado em plena tarde,
adiante uma criança obesa chorava por não conseguir correr, outras caçoavam dela.
Um cão sarnento implorava por amor, todavia, resignado, seguiu, silencioso como antes.
Carros parados em frente à igreja, sou interpelado por Francisco, pipoqueiro:
"acelera o passo que o futuro começou ontem e tu não estavas aqui. Que sabes tu?"
Levou-me de volta à escola, onde encontrei o busto de cobre do primeiro médico do mundo.
No quintal da casa de minha amiga um papagaio mal se movia numa gaiola estreita - era o Brasil.
Tevês ligadas em todas as residências, súplicas a Deus em cada esquina, salões de beleza,
bares, padarias, mercadinhos e lojas de celulares. Uma velha senhora tombou à minha frente,
um homem pediu-me um tostão para lhe comprar remédios, o juiz deu-me um soco na cara,
um bêbado beijou-me, uma vulva colou-se à minha perna, um cavalo levava o fidalgo, que sorria.
Um rato enorme à entrada do hospital, de lá eu corri feito criança, havia algo atrás de mim.
Lambi a cabeça de Maria, a doida, deitei-me no colo de DuPiru, comi um dos piolhos de Detina.
Televisores histriônicos em todas as casas, um auto falante pendia desligado do capô de um pampa,
a ambulância levava o filho da mulher que gritava, enquanto o padre me dava a extrema unção.
Porém Francisco, pipoqueiro, avisou-lhe: "este crê no espírito" e riu quando a batina roçou-me a face,
deixando-me ali, quase morto, até que o homem que corria trouxe-me água e uma vagem de ingá
e me cobriu o rosto com uma página da revista lida por minha mãe no salão de beleza, anos antes.
Francisco bebeu um copo de pinga, antes de gritar aos crentes que rezavam na igreja do Sr. Nozinho, "diabos estúpidos, desalmados!". Eu acordei antes que um pássaro preto cagasse na minha mão
e voltei, impaciente, entristecido, constrangido, saudoso, vazio e ensimesmado à estação rodoviária, de onde parti, resoluto e forte. Passaram-se os anos e ainda ouço o choro da criança obesa vagarosa,
que fugia dos insultos que os demais lançavam sobre ela. A cada lágrima dela, um retorno,
uma vaga de soluços meus, culposos, eu era um dos demais, eu era o homem, a mulher e o filho.
Francisco o sabia e o padre, não. Nem a cliente do salão, tampouco o dono do bar. Que sei eu?
O que resta desta estranha aventura, o que completa esta trajetória, aonde dará minha vida?