Sendo o passado uma geleia espessa
onde vidas transitam fantasmagóricas,
de sua escura e encardida gosma
poderíamos subtrair qualquer certeza?
Compostas por fugas na surdina
de beijos longos entre paredes rotas,
a história, dita ciência, torna incertos
os relatos que revelam antigas eras
sujeitos que não figuram entre escolhidos
são autores de máximas façanhas:
jamais haverá, porém, arqueologia
que reconheça suas personalidades
Porque na geleia púrpura, submersas,
caras e mãos dos mártires somem,
anônimas entre as oferendas aos deuses
dos faraós, dos chás e de essênios monges
As mãos que escreveram os pergaminhos
não assinaram este novo testamento
tal qual a mulher, de Magdala
enterrada viva por machistas de batina
O passado floreado que a nós chega,
com nomes e músculos torneados
de gênios com discursos carismáticos,
não corresponde à realidade dos fatos.
Na enorme poça funda e embaçada
perde-se a luz do seu conteúdo:
dedos sem anéis a fiarem o tempo
e concubinas entre nobres aposentos.
Vale pensar que na vida após a morte
encontraremos as versões fidedignas
das idas e vindas dos acontecimentos.
Nossos olhos mergulham em gosma escura
vitimados pela sombra da injustiça
suplantados por histórias mal contadas.